quarta-feira, junho 14

Encontro

Continuação de Subsolo de Garagem

Sai do estacionamento para a avenida. O trânsito fluia tranquilamente. A vida noturna apenas acordara naquela hora. Belas jovens iam e viam. Afluíam aos montes aos bares e casas noturnas da região.
Nunca me cansava de ver as luzes dos neons. Amarelo, verde, vermelho, azul, lilás... Não conseguia entender como cores de espectros tão diverso podiam ser mescladas em combinações tão suaves e inebriantes. Ou em outras, como as combinações eróticas dos neons das casas adultas, ávidas por aqueles que quisessem ter uma boa diversão, desde que não tocasse nas "moças" da casa.
Eu mesmo fui a várias dessas casas, ao sair do trabalho. Todas as terça-feiras de cada mês eu saia para algum lugar. Fosse um bar, fosse uma casa erótica, fosse a uma exposição de arte. Fosse o que fosse, invariávelmente eu encontrava companhia.
Uma buzina me faz retornar à vida real. Sei que não era uma boa idéia ir vê-la mas, diabos!, eu tinha esse direito! Talvez nem fosse um direito, apenas aquele sentimento de posse ainda reinante mesmo depois de 3 anos. Anos esses de nenhum relacionamento estável para mim: belas garotas, com as quais gastei até sentir-me amado, meros objetos de uma diversão que nunca durava muito...
O carro parecia sendo guiado sozinho para a casa dela. Sem que eu percebesse já estava a poucas quadras de lá. Olho para minhas mãos e me dou conta do quanto elas estão suadas. Nada de anormal. Quantas vezes já tentei isso e nunca consegui? Realmente é patético um homem de 45 anos como eu não ter a coragem. "Honre as calças que veste", diria meu pai se estivesse aqui ao meu lado. Poucas quadras me separam de sua casa. Meus dedos tiritando ferozmente no volante. "O que eu vou dizer?"
Talvez um “Olá, eu quis ver se você estava bem.”. Não, isso é tão simplório. para não dizer ridículo. Se eu realmente quisesse saber, bastaria um telefonema. Um fax, email, carta, telegrama. Mas dai a me deslocar do outro lado da cidade apenas para perguntar isso?
Quem sabe um “Boa noite! Eu passei aqui por perto e pensei em vê-la.”. Mais ridículo ainda ... Ela sabe que eu moro do outro lado da cidade. Aliás, eu escolhi aquele lugar para morar porque sabia que seria o mais longe possível. Pobre de mim que faz juz ao ditado que diz: "Longe dos olhos, perto do coração ... ". Mesmo assim, quantas noites não passei fora de casa sem dar notícias ou pensar em vê-la?
Paro o carro uma casa antes e observo. A rua está deserta. Olho em volta e percebo apenas sombras de pessoas que passam perto das janelas de suas casas. Ouço gargalhadas abafadas em uma casa perto. Felicidade. Uma tv está ligada na casa da esquerda. A família provavelmente está reunida, curtindo o horário nobre.
Observo a casa. Ainda é a mesma casa em que morava antes de casar comigo. O muro baixo coberto de hera, as margaridas de que tanto gostava, a casa em tons claros. Algumas luzes acesas, sala de jantar, quarto, biblioteca. Tera feito ela uma reforma e mudado tudo? Minha testa franzi ... Afinal, com o dinheiro que ela arrancou-me, umas três casas dessas seriam facilmente construídas.
As árvores plantadas dos dois lados da calçada sempre formaram um teto folhoso que escurecia a rua, com sombras tomando vida e escondendo-se pelos troncos. Lembro-me que foi por isso que ela escolheu essa rua para morar ainda solteira. Mas, assim como em nosso casamento, as sombras que tomavam a vida dessa rua serviram de inspiração para as sombras que se apoderaram de nosso matrimônio ...
Poderia dizer “Oi, é que passei o dia lembrando de você... Posso entrar?”
Meu Deus, para quê tanta franqueza? Eu não preciso disso. Nem ela. Avanço com o carro e paro em frente ao pequeno portão de madeira. O interfone ao alcance de meus dedos. O frio cortante me impede de esticá-los ao encontro do botão. Não sei se tremo de frio ou pela descarga repentina de adrenalina.
Como ela estará? Talvez recém-saída do banho, secando os cabelos cacheados, as pernas longas à mostra no roupão. Ou ocupadíssima na revisão de mais um livro, ainda explorada por aquela editora que nunca pagou o quanto vale seu trabalho. E se ela não quiser me receber? Isso não.
Ela entenderia o que estou passando, seria solidária ou ao menos entenderia. Sua formação em psicologia, suas pós-graduações são para isso, não são? Entender aqueles que já não se entendem. Meus dedos não ousam apertar esse mísero botão...
- Boa noite, posso ajudá-lo?

Um homem alto, óculos redondos, cabelos compridos e barba descuidadamente mal-feita brotou entre minha mão e o interfone. Por alguns instantes fico desconcertado. Meu sangue gela.
-É a casa da Ana,certo? Poderia falar com ela?

Era melhor dizer que estava perdido, que procurava pela casa de um fictício Raul ou um abrigo de mendigos.
- Ela não está. Saiu com umas amigas dos tempos da faculdade. É a despedida de solteira de uma delas, sabe Deus que hora isso pode terminar. Como se chama?
Seu sorriso era cordial e atencioso e naquele momento só desejei que ele morresse. Desconversei e disse:
- Tu-Tudo bem,então. E-Eu volto outro dia.

Ele apenas acenou, despreocupado, sentando-se no muro baixo e acendendo tranquilamente um cigarro. Oh, como eu o odeio. Nenhum sinal de ciúmes com essa visita noturna, com a saída da Ana para festinha com aquelas suas amigas malucas. Com certeza ele já sabia, de antemão, quem eu era e o que fazia lá na frente da casa dela. Com certeza também contaria para a Ana. E eles ririam de mim até tarde. Quem sabe até não já o façam hoje?
Eu sempre detestei seus amigos intelectualóides dos tempos da faculdade, seus interesseiros colegas de trabalho, seus famosos editores, seus parentes sem graça, seus vizinhos intrometidos e ele ali tão à vontade com todos eles!
Vôo pelas ruas, o limite de velocidade nem mais existe. As luzes, que antes passavam lentamente por sobre o parabrisa agora eram meros traços rápidos que se perdiam no caminho. A sensação de imprudência e infração das leis me é agradável. De repente temo pela poça que vi na garagem e sigo mais devagar.
Só quero chegar em casa,tomar um daqueles comprimidos milagrosos que me fazem dormir sem sonhos e esperar que o tempo passe e outro dia comece, me arraste e me prenda em suas teias invisíveis.

Um comentário:

Anônimo disse...

entender aqueles que não se entendem... quisera eu entender todo mundo... e esse ciúme todo de todos (amigos, colegas, editores, etc...)... quem entenderá??? dormir sem sonhos também não dá pra entender... as telas invisíveis de mais um dia se aproximam... e lá estaremos nós sem entender porcaria alguma... ou muito pouco...