O dia amanheceu chuvoso. Os pássaros, escondidos entre as folhagens das copas das árvores que circundam minha casa não são mais visíveis ou podem ser ouvidos. Hoje são apenas corpos tentando se proteger do vento e das saraivadas d'água que insistem em açoitar os pequenos.
Paro perto da janela da cozinha. Vejo a água escorrer nos vidros. Gotas que escorrem alternando entre um descer rápido e outro mais contido, dependendo apenas da quantidade d'água presente no caminho.
O bule já canta sua cantiga matinal. Todo dia a mesma coisa. Acordo, coloco a água para ferver e vou tomar banho. Ao terminar o banho, apenas enrolado à toalha, vou até a cozinha para colocar o pão na torradeira.
Volto para vestir algo e ir ao trabalho. Do quarto ouço o característico som da torradeira terminando de torrar o pão. Com o bule fumaçando, preparo meu café. Café forte, necessário para me acordar. Meio sonolento, ainda penso nas pernas de alguma mulher que por ventura tenha visto no dia anterior. Nada demais, apenas devaneios de um homem solitário.
Passo a geléia no pão. Dependendo do dia, prefiro pasta de amendoim, mas penso no meu peso e no quanto aquilo vai contribuir para mais uns centimetros na calça. Passo também manteiga ou como com queijo.
De café tomado, vou até o quarto pegar minha pasta. Como executivo de uma grande empresa, penso em como seria bom ter uma vida mais simples, mais ordinária, mas em companhia de mais pessoas.
Problemas, problemas ... Todos os dias os mesmos fantasmas vêm me assombrar, me lembrando que uma semente é necessária para que nossa vida tenha sentido. De onde tiraram isso? É mesmo necessário deixar uma semente? Acaso eu quero deixar aqui nessa Terra o meu DNA cheio de defeitos? Não ... Prefiro me calar e não revidar a esses fantasmas. Com o tempo, eles perceberão que não adianta, ainda que não desistam nunca.
É função deles me lembrar disso todos os dias. E é minha função rechaçar esses pensamentos.
Saio de casa sempre às 09:34 da manhã, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Como um relógio suiço, eu me preparo sempre para esse horário. É como se nessa hora uma abertura extra-temporal se formasse em minha passagem pelo caminho, de maneira que a chegada ao trabalho é mais rápida.
Não sei de onde tirei essa idéia, mas sempre chego mais rápido ao sair nessa exata hora.
Entro no carro. Meus dedos ficam tiritando por sobre o volante. Respiro fundo. É necessário sair de casa. A adrenalina que me corre nas veias me dá essa sensação de frio, ainda que não esteja, todos os dias. Queria ter mais coragem de sair de casa, do casulo.
Visto minha máscara de homem independente e acelero. As gotas se quebram no parabrisas, ligado na velocidade 2. Nunca uso a velocidade 1 ou 3. Seguindo pela rua, ligo o som do carro e coloco o CD gravado anos antes, com músicas já conhecidas há muito. Quando o CD quebra ou arranha, gravo outro, com as mesmas músicas, na mesma ordem.
Ouço sempre a primeira música, depois pulo para a quinta. Por fim, volto para a segunda e deixo rolar até a quarta, finalmente pulando para a sexta e deixando que o CD vá até o fim.
Já pensei em gravar um CD com a nova ordem, mas isso implicaria que eu mudasse minha rotina. E isso é sofrível para mim. Nada pode ficar fora do meu controle. Meus objetos, minha vida, minha vida ... Isso é vida? Penso nisso também ao pular da faixa primeira para a quinta.
Mas meu cérebro sempre dá um jeito de justificar, como se fosse necessário encontrar uma justificativa para meu comportamento. Ora, meu comportamento é apenas por que é. Não é necessário explicação ou justificativa.
Sem que ao menos perceba, já estou na empresa. Abro a porta do carro e coloco o pé direito primeiro no chão. Só então, depois de contar de 1 a 20, pausadamente, coloco o outro pé no chão e me levanto. Cato a minha pasta e me ponho a andar em direção a o hall da empresa.
Mais uma vez, me pergunto: isso é vida?
3 comentários:
a mim,parece um pesadelo macabro...Sério! esse post me causou agonia.
ja vi q nao gosta da faixa 3 dos cds essa figura boa...
oh eu, oh vida...
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