quarta-feira, junho 20

Tabacaria



"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."
Alvaro de Campos




Clichê... isso tem me saido tão clichê, mas não consigo deixar de me sentir assim...

segunda-feira, maio 21

HAI KAI

quando vejo o sol se pondo
na minha frente
passa um marimbondo.
(M.B.)


belezinha gentilmente cedida por Márcio Boas.

sábado, abril 28

O campo onde eu morri...



Tenho pensado imensamente na chuva e de como é estar constatemente embaixo dela e nunca se molhar. Quão triste é estar seca e esperar se que a água a escorrer no meu corpo, penetre enfim, pele, pingo, dor...

Mas não há nada.

Nem sempre a chuva traz felicidade aos campos. De fato, nunca vi. Só escuto lendas [ e pode ser que esses silfos alvissareiros falem do que nem entendem ou entendam sim -mas da beleza das águas furiosas e assim falem]. Mas a chuva pode não trazer nada. Ou levar tanta coisa...
Chuva pesada. Tempestade onde nem minhas lágrimas molham.

Nem sei quantas vezes fui ao blog da Thaís. E quantas vezes li tanto até decorar:
" E a chuva não é testemunha
do quanto a gente se esforça para passar por ela
sem que ela passe por nós..
porque a chuva não testemunha nada
e passa."


De chuvas e de paixões, eu não entendo mesmo nada.



em tempo: indicação de boa leitura?
Das Chuvas e das Paixões I, I e II.
Devia postar aqui. Lindos, todos. Mas não pedi ao dono...

"O campo onde eu morri "é o nome de um episódio da 4ª temporada de Arquivo X e fala sobre vidas passadas.

sábado, abril 7


..."nem todos os que vagam são vadios "...
J.R.R. Tolkien

domingo, abril 1

Sozinha pelos campos...


Dos nossos problemas, a verdade é que quanto menos alguém souber, melhor você vai ficar.

Se ninguém souber de nada, aí sim você poderá dormir em paz [afinal, 3 pessoas só podem guardar um segredo se duas delas estiverem mortas].

Pessoas a quem amamos são capazes de fazer muita coisa que não entendemos [e nunca iremos entender] e que nos colocam em maus lençóis...]

Pessoas da familia conseguem fazer coisas que não entendemos [e nunca iremos entender] e que nos colocam em maus lençóis...] em progressão geométrica.

Irmãos preferem quebrar a cara a seguir conselhos. Sendo do sexo feminino, eleve-se tudo a décima potência...

Às vezes você é levada a fazer coisas totalmente contrárias ao que à seu coração pede, na simples certeza de estar resguardando alguém de ser importunado em vão.

O ultimo fim de semana é mais que suficiente para ocorrer todas as merdas nas quais você passou grande parte dos ultimos 30 dias pensado.

Às vezes tudo mundo vê tudo errado [e eu vejo o certo].

Às vezes eu vejo tudo errado [e todo mundo vê o certo].

Às vezes tudo mundo vê tudo certo[e eu vejo o errado ].

Às vezes eu vejo tudo certo [e todo mundo vê o errado ].

Nunca temos a mesma visão [nem teremos?]



segunda-feira, março 19

Casa Pré-Fabricada
"Abre os teus armários, eu estou a te esperar
Para ver deitar o sol sobre os teus braços, castos
Cobre a culpa vã, até amanhã eu vou ficar
E fazer do teu sorriso um abrigo

Canta que é no canto que eu vou chegar
Canta o teu encanto que é pra me encantar

Canta para mim, qualquer coisa assim sobre você

Que explique a minha paz
Tristeza nunca mais

Mais vale o meu pranto que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas
Abre essa janela, a primavera quer entrar

Pra fazer da nossa voz uma só nota

Canto que é de canto que eu vou chegar
Canto e toco um tanto que é pra te encantar
Canto para mim qualquer coisa assim sobre você
Que explique a minha paz
Tristeza nunca mais"
(Marcelo Camelo)



Mudou algo. É como se leveza de espírito pudesse ser respirada nesse vento que nem é de primavera. É como se eu nem estivesse aqui antes. Cheguei agora e não conhecia nada. Talvez até amanhã eu vá embora de novo - ou me mandem embora. Agora, porém, estou aqui, sou aqui...
Muito prazer!!

segunda-feira, fevereiro 26

Janelas abertas

"Era uma pálida manhã. A luz era tênue, com jeito de dias lavados de inverno, céu sem nuvens depois de muita água...

Entrei no quarto, vassoura em punho - aquele quarto enorme, na velha casa dos meus pais, que construiram para o meu irmão, ainda uma criança balbuciante. O primeiro quarto da casa, perdido entre três variações de salas antes que chegassem os outros quartos. Quarto de homem, diziam, pra chegar em casa tarde da noite, nem acordar todo mundo.

O quarto estava lá, janelas abertas, repleto de livros velhos, papéis, prateleiras sem fim, empoeirado como se há décadas ninguém entrasse lá, a casa realmente fechada e tivessemos - eu, Suhelen e ele - chegado ali meio de passagem.

Então o vi.

Ele estava sentado em numa escrivaninha, em meio àquele reino de poeira e teias de aranha. Logo ele, com sua alergia a ácaros! Suhelen vinha atrás de mim. Fiquei ali, parada à porta reclamando sobre a poeira e todas essas coisas de um modo bem parecido com minha o que minha mãe costuma fazer com papai quando ela "briga" mas, no fundo, está se divertindo.

Ele levantou os olhos e sorriu. Estava bem mais magro do que é. Quase tanto como naquela foto adolescente que mandou-me certa vez. O cabelo começando a pratear, algo mais comprido que o costumeiro, algumas ruginhas ao redor dos olhos, fazendo-o charmoso como nunca vi antes. Os olhos se iluminavam tanto enquanto sorria!

"_Vem cá e me dá um beijo, vem?" - ele afastou um pouco a cadeira da escrivaninha e bateu de leve a mão direita na coxa, convidando-me para ir lá e sentar-me.

Eu torci a boca e fiquei batendo o pé, cara de menina macriada, contendo sorrisos.

"Não! Você sabe que é alérgico! sai por favor!"

A expressão dele era divertida. Suhelen, atrás de mim, ria a valer. Ele levantou, virou o rosto de leve, num desdém fingido e engraçado, veio até a porta, pronto para sair. Eu tentei beijá-lo e como criança brincando, ele fugia do beijo, mexendo a cabeça para os lados, rindo a valer. Daí, parei com o joguinho. E então ele me beijou. A taquicardia, a sensação estranha no ventre... Tudo, como se o beijo fosse de verdade, terno e cálido como sempre foram nossos beijos, e ainda sorrindo saiu."


Passei muito tempo com essa imagem na cabeça. Quando a sonhei? Há um ano? Algum tempo a mais? Lembrei dele hoje, no início da noite. Foi um desse sonhos que você jura terem realmente acontecido.Tanto que me perturbou bastante. E não sei por que estou chorando agora, depois detê-lo escrito...
Depois de tanta coisa...
Depois de tanto tempo...


(Eu ainda não sabia, mas ele é alérgico mesmo.)

sábado, fevereiro 17

Vento, Chuva e Fantasia


O guarda-chuva voou para longe. Ela correu para abrigar-se. Por que essa chuva agora, quando só existia o velho celeiro como refúgio? O frio fazia-lhe tiritar, o vento assobiava forte, impassível, açoitava-lhe as pernas, fustigava-lhe as forças. Não tardaria a anoitecer e a tempestade a obrigaria a passar a noite ali.

O aspecto do celeiro não podia ser pior. Mesmo por suas histórias de fantasmas e ainda cercado de capim alto, cheirando a madeira podre (e coberta de orelhas-de-pau), muita sujeira e abandono... Algumas trepadeiras aqui e ali subiam pelas paredes de pedra e seguravam as janelas e portas, em outros pontos formavam uma sebe de flores lilases interligando bancos e tornos onde um dia foi um pátio. Entremeios, a ferrugem corroia arados expostos às eras...

Ela empurrou com força a um dos lados da enorme porta, a mais perto do riacho e do moinho do celeiro, a mais encoberta pelo mato alto. Sentiu a madeira estalar e tremer. As velhas paredes de pedra resistiriam a tempestade, quanto à madeira, não havia certezas. Diziam ter sido muito bonito ali. E movimentado também. Afinal todos precisavam da moenda e não havia outro lugar em mais de 10 léguas em qualquer direção. Há mais de seis décadas isso. Poucos os que lembravam. Isso antes dos homens das fabricas surgirem e comprarem todos os grãos.

O ar era fétido, pesado. Mas a lufada de vento que entrou com ela – e com a tempestade- trouxe dos campos o frescor das ervas contentes pela chuva e o cheiro de terra molhada. As paredes pareceram suspirar ante o inusitado presente. Parada, as mãos estendidas a um lado da porta, a menina pensava se valia entrar. Seus olhos divisavam na escuridão sombras de carroças, restos de barris velhos e algo que um dia poderia ter sido feno (um velho e seu cavalo viveram ali até o verão passado, quando a família do ancião surgido do nada apareceu na vila em busca de seu patriarca que desaparecera...).

Celeiro, celeiro... Nome estranho. Conhecia da escola sua origem latina, mas o nome lembrava-lhe vagamente algo nórdico. Homens e mulheres armazenando comida para fugir das mãos gélidas do inverno (que ela sempre imaginou como uma mulher, pois só as mulheres são capazes de tantas fúrias e impiedades verdadeiras). E agora, ele abria-lhe as portas, acolhendo-a, abraçando-a. Era só uma noite. Não iria temer.

quinta-feira, fevereiro 15

Baobá


Eu tenho um baobá... Cheguei um dia até a achá-lo bonitinho e ri enquanto crescia. Deixei crescer...
Hoje ele me enlaça, para vê-lo mesmo quando estou longe.
[Tudo por que há sombra. Mesmo sendo tão entrecortada pelo que há de mais insuportável no sol.]

terça-feira, fevereiro 6

Enganai-me sempre assim


Contos Libertinos - Marquês de Sades -Enganai-me sempre assim

No mundo há poucos seres tão libertinos quanto o cardeal de.... do qual, considerando-se que ainda seja homem saudável e vigoroso, permiti-me guardar o nome em segredo. Sua eminência tem um acordo feito em Roma com uma dessas mulheres cuja profissão oficiosa é fornecer aos devassos objetos necessários ao alimento de suas paixões; todas as manhãs ela leva até ele uma jovem de no máximo treze a catorze anos, a qual monsenhor só usufrui da maneira inconveniente com que os italianos não raro se deliciam, de modo que a vestal, saindo das mãos de Sua Grandeza tão virgem quanto antes, possa, uma segunda vez, ser vendida como nova a algum libertino mais decente.

A matrona, totalmente a par das máximas do cardeal, não encontrando, certo dia, a seu alcance, o objeto cotidiano o qual era obrigação sua fornecer, imaginou travestir como uma menina um belíssimo menino do coro da igreja do chefe dos apóstolos; colocaram-lhe uma peruca, uma touca, saiotes, e todo o aparato falso que se devia impor ao santo homem de Deus. Todavia, não se lhe pôde conferir o que realmente ter-lhe-ia assegurado semelhança total com o sexo que ele imitava; mas essa circunstância muito pouco embaraçava a alcoviteira... - Ele não pôs as mãos lá nestes dias, - dizia àquela dentre suas companheiras que a ajudava na trapaça ele só visitará, com toda a certeza, o que assemelha essa criança a todas as meninas do universo; assim, nada devemos temer...

A mãezinha se equivocara; decerto ignorava que um cardeal italiano era homem de tato muito delicado, e gosto apurado o bastante para se enganar em semelhantes coisas; chega a vítima, o grande padre a imola, mas ao estremecer pela terceira vez:

- Per Dio santo, - exclama o homem de Deus - sono ingannato, questo bambino è ragazzo, mai non fu putana!

E ele verifica... Contudo, nada acontecendo de muito embaraçoso para um habitante da santa cidade nesse lance aventuroso, sua eminência prossegue, dizendo, talvez, como esse camponês a quem se serviu trufas como batatas: Enganai-me sempre assim. Mas quando a operação terminou:

- Senhora, - diz ele à aia - não vos censuro por vossa confusão.

- Monsenhor, desculpai-me.

- Como vos disse, não vos censuro, mas quando isso acontecer-vos de novo, não deixai de advertir-me, porque... o que eu não vir no primeiro momento, verei neste aqui.


....

Therese Berkley


Estava eu lendo Contos Libertinos do Marquês de Sade quando escuto um do lado de fora. A Superinteressante arremessada pelo carteiro (tudo bem... Pra que chamar o dono da revista se você pode jogá-la em uma poça d'água? Santo saquinho plástico! pois é...voltando ao assunto do post...voltando...) Nesse mês, há uma página -necessitava mais...) falando sobre Therese Berkley. Coincidência sacana, no bom sentido ( caso isso for possível). Dona de um bordel em Londres frequentado por nobres, Therese Berkley era prática nos ensinamentos de um livro chamado Tratado sobre o Uso do Açoite. Naquela época, casas especializadas em flagelação eram moda entre os nobres ingleses apanhar na cama e a mulher era famosa (até o rei George 4º ia por lá...).
A doida criou um brinquedinho diferente, que parece um pau-de-arara invocado (dá-lhe instrumentos de tortura), o cavalo de Berkley pra rodar, doer, girar, doer... (pena q a única ilustração que achei do mimo foi na Super e vcs não poderão vê-lo por aqui...).
ui!
deixa pra lá essa minha empolgação...

dominatrix
Sacher-Masoch
Berkley
Sade

hum hum....não irei postar fotos[minhas]de cinta-liga...
=P

quarta-feira, janeiro 31

"Oh eu, oh vida
Das perguntas sempre iguais
Dos interminaveis comboios de descrentes
Das cidades a abarrotar de idiotas
O que há de bom no meio disto
Oh eu, oh vida?" (Walt Whitman)


Nesses dias me sinto só como poucas vezes foi.Sei lá mesmo se é solidão ou descrença. Não deve ser coisa alguma. E de tudo que me espanta, sou eu a mais assustadora das coisas. A coisa impensada, a incriável, temorosa como se o movimento dos astros fosse dar cabo de minhas forças.
E cansada. Como se trabalhasse de sol a sol, jogada no vento e chuva, açoitada por mares e pedras. Cansada até para pensar no que ando fazendo (se devia ter feito ou desfeito) e se meus passos- nada largos- me levam mesmo a alguma estrada.

O que há de bom no meio disto?


Realmente, o que há? Não serei eu, certamente. Pelos dias que se seguem e as palavras vertidas nesse chão escuro. Tão escuro ...
Algo me incomoda mas ao certo não sei do que se trata. E nem é a frieza dos abraços ou o que há de oculto nos olhares alheios e rimas pobres.
Há coisas que preferia não tê-las feito, esquecer definitavamente delas, ou encarar como parte da vida, que acontecem e pronto. E sair dessa escravidão...
Há mais lá fora. Mesmo que eu não consiga ver da janela.

segunda-feira, janeiro 29

"O melhor negócio é ainda o seguinte: não morrer, pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso"

Clarice Lispector, em A Hora da Estrela.


Pois é.
E assim volto com esse blog, pois matá-lo de nada adiantaria.
Pode sentar e escutar. E quando eu não tiver o que dizer, o que mostrar, não é que os dias passaram-se em branco ou toda chaga já curou ou que a alegria foi embora sem dizer ao menos tchau. Não é nada disso. É cansaço - de mim, da vida, do céu - dessas coisas imutáveis a quem devo obediência.